sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A Maior das Corridas


“Isle of Man Tourist Trophy”: a trajetória e o fascínio de uma prova escrita por gigantes
Texto: Fábio Magnani Fotos: Divulgação

Era uma vez um menino de nove anos que ganhou uma enciclopédia ilustrada dos pais. Isso aconteceu há muito tempo, lá no meio da década de 1960. Os volumes semanais mostravam como eram todas as coisas do mundo. Também havia alguns mapas, bem grosseiros, só com as principais cidades e alguns rios. Nesses mapas, cada região era ilustrada por uma figura.

A Inglaterra era representada pela Tower Bridge, a famosa ponte de Londres sobre o Rio Tâmisa. A Escócia vinha com um “kilt” – aqueles saiotes que os homens usam por lá. Enquanto o menino olhava o mapa do Reino Unido, seus olhos se prenderam em uma pequena ilha entre a Inglaterra e a Irlanda. Era tão insignificante que o texto que acompanhava o mapa nem ao menos a citava. Era uma tal de “Isle of Man” “(Ilha de Man”).
O que chamou a atenção do menino foi a figura que escolheram para ela. Não era a tradicional menina camponesa com vestido rendado que os desenhistas geralmente escolhem para esses países bucólicos. O que representava aquela pequena ilha era uma moto de corrida. Aquela imagem ficou registrada para sempre na mente do garoto.

PERFEITA PARA MOTOS
Os desenhistas estavam certos em escolher uma moto para aquela ilha. Lá ocorre, desde 1907, a maior corrida de motos do mundo – Isle of Man TT (Tourist Trophy). “Maior” porque é a mais antiga, a mais perigosa, a mais longa, a que tem mais curvas e porque sua história foi escrita por gigantes. A pista de rua percorre boa parte do país de 80 mil habitantes: montanhas, campos e cidades. Os pilotos passam a um triz dos muros, desviam de placas, fogem dos bueiros e quase encostam o joelho na sarjeta. Tudo isso enquanto os moradores e turistas assistem bem de pertinho, das casas, dos barrancos e dos restaurantes à beira do percurso. A velocidade média dos pilotos mais corajosos é superior a 200 km/h.


Mark era o nome do menino – que cresceu para ser o publicitário Mark Gardiner. Não tinha muita relação com as motos, a não ser com aquela da figura do mapa, que, mesmo assim, já estava quase esquecida. Mas, quando passou dos 30 anos, começou a repensar a vida, como fazem todos os homens. Mark passou a lembrar dos sonhos que tinha quando criança. Será que poderia ter sido um campeão no TT? Ele deixara de andar de moto na adolescência, antes de poder descobrir. Talvez, agora fosse a hora.

Então, com a idade em que os profissionais costumam se aposentar, Mark decidiu começar sua carreira de piloto. Não era nenhum gênio da pilotagem, mas participava de forma digna em corridas de final de semana. Até conseguiu uma carteira de piloto profissional “expert” na Associação Americana de Motociclismo. Não é “tão pouca coisa” para um amador.

DESCOBERTA
Mark conheceu a Ilha de Man só em 2000, já aos 45 anos de idade. Foi como turista comum, mas alguma coisa mudou em seu espírito. Ao voltar ao trabalho na agência de publicidade, tudo o irritava, parecia mesquinho e sem sentido. Poucos dias depois, conversando sobre a corrida que assistira na Ilha de Man, um amigo motoqueiro perguntou, sem nenhuma pretensão, se ele participaria de uma competição como aquela. Naquele exato momento, a pequena mudança que havia começado na Ilha de Man explodiu em um par de frases: “Sim, eu participaria. Aliás, eu vou no próximo ano.”


Brigou com o dono da empresa e foi cuidar da preparação. A corrida foi suspensa em 2001, por causa de uma epidemia de febre aftosa, mas em janeiro de 2002 ele desembarcou mais uma vez na ilha, agora como piloto e escritor. Seus planos eram participar da corrida, enviar algumas colunas para revistas de moto e escrever um livro em que contaria, além da preparação e da competição, como as motos chegam de barco, os dias em que a pista é aberta para amadores e como é a vida na ilha durante o resto do ano.


Dizem que é impossível decorar as mais de 140 curvas. Pode não ser verdade, mas, se for possível, só o é para alguém com bastante experiência no TT. Mark sabia que aquela seria sua única corrida. Não podia usar aquele ano só como experiência. Tudo tinha que dar certo. Por isso chegou cinco meses antes. Como a pista é pública, ele não podia treinar com a moto. Para compensar, fazia o percurso de bicicleta, decorando-o, observando cada mudança de terreno e calculando como deveriam ser as tomadas de curva.

O LIVRO
No livro “Riding Man”, ele também conta a história de um monte de gente da ilha, para os quais a corrida anual é o símbolo da passagem do tempo e, também, de suas identidades – mecânicos, pilotos, donos de restaurante, vendedores, professoras, bibliotecárias etc. Até as superstições estão na obra, como a da Ponte das Fadas, onde ninguém tem a coragem de passar sem vocalizar ao menos um “oi” para suas protetoras. Uma vez que gosto muito de livros, achei particularmente interessante o capítulo em que o autor fala sobre suas idas à biblioteca para pesquisar, nos arquivos dos jornais locais, tudo o que já fora dito, vivido, pensado e escrito sobre o TT. Daquele jeito, ele podia unir a vivência real nas pistas com a experiência passada de gente que não estava mais por perto.


Depois de um tempo, à medida que Mark conhecia melhor a geografia e a história da pista, o medo começou a permear seus pensamentos. Por exemplo, uma das fontes do medo de Mark eram as centenas de placas funerárias que as pessoas colocavam em volta da pista para indicar locais de acidentes. Isso era agravado pelas histórias que lia na biblioteca. Até que percebeu que as placas e os textos não representavam a morte. Ao contrário: eram sinais de que grandes homens tinham passado por ali.

As pessoas colocavam as placas não em homenagem aos que morreram, mas aos que tiveram a coragem de viver.   
Quando chegou perto da corrida, as emoções se transformaram em uma tempestade. O sentimento de realização se confrontou com o medo do fracasso. Vários amigos viajaram para assistir ao evento. Os turistas invadiram a ilha. Festa e cobrança, júbilo e medo – não é fácil viver um sonho.


Não contarei se ele conseguiu se classificar ou não, se ganhou a corrida ou se teve um grave acidente... Nada disso importa. Só quero lembrar que isso não é um conto de fadas, é uma história real. Bem... Pensando melhor, talvez seja uma fábula. A de um homem comum que pilotou sua moto na maior de todas as corridas.

BIBLIOGRAFIA
"Riding Man", Mark Gardiner, Editora bikewriter.com (2007)

CONTATO
www.fabiomagnani.com
moto@fabiomagnani.com

Matéria publicada na edição 126 da Revista Moto Adventure

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